HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. FLAGRANTE. DOMICÍLIO COMO EXPRESSÃO DO DIREITO À INTIMIDADE. ASILO INVIOLÁVEL. EXCEÇÕES CONSTITUCIONAIS. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. AUSÊNCIA DE FUNDADAS RAZÕES. AUSÊNCIA DE CONSENTIMENTO VÁLIDO DO MORADOR. INDUÇÃO A ERRO. VÍCIO NA MANIFESTAÇÃO DE VONTADE. NULIDADE DAS PROVAS OBTIDAS. TEORIA DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA. ABSOLVIÇÃO. ORDEM CONCEDIDA. EXTENSÃO DE EFEITOS AOS CORRÉUS.
1. O art. 5º, XI, da Constituição Federal consagrou o direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, ao dispor que a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.
2. O Supremo Tribunal Federal definiu, em repercussão geral (Tema 280), que o ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo – a qualquer hora do dia, inclusive durante o período noturno – quando amparado em fundadas razões, devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto, que indiquem estar ocorrendo, no interior da casa, situação de flagrante delito (RE n. 603.616/RO, Rel. Ministro Gilmar Mendes, DJe 8/10/2010). No mesmo sentido, neste STJ: REsp n. 1.574.681/RS.
3. Apesar da menção a informação anônima repassada pela Central de Operações da Polícia Militar – Copom, não há nenhum registro concreto de prévia investigação para apurar a conformidade da notícia, ou seja, a ocorrência do comércio espúrio na localidade, tampouco a realização de diligências prévias, monitoramento ou campanas no local para averiguar a veracidade e a plausibilidade das informações recebidas anonimamente e constatar o aventado comércio ilícito de entorpecentes. Não houve, da mesma forma, menção a qualquer atitude suspeita, exteriorizada em atos concretos, nem movimentação de pessoas típica de comercialização de drogas.
4. Por ocasião do julgamento do HC n. 598.051/SP (Rel. Ministro Rogerio Schietti), a Sexta Turma desta Corte Superior de Justiça, à unanimidade, propôs nova e criteriosa abordagem sobre o controle do alegado consentimento do morador para o ingresso em seu domicílio por agentes estatais. Na ocasião, foram apresentadas as seguintes conclusões: a) Na hipótese de suspeita de crime em flagrante, exige- se, em termos de standard probatório para ingresso no domicílio do suspeito sem mandado judicial, a existência de fundadas razões (justa causa), aferidas de modo objetivo e devidamente justificadas, de maneira a indicar que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito; b) O tráfico ilícito de entorpecentes, em que pese ser classificado como crime de natureza permanente, nem sempre autoriza a entrada sem mandado no domicílio onde supostamente se encontra a droga. Apenas será permitido o ingresso em situações de urgência, quando se concluir que do atraso decorrente da obtenção de mandado judicial se possa objetiva e concretamente inferir que a prova do crime (ou a própria droga) será destruída ou ocultada; c) O consentimento do morador, para validar o ingresso de agentes estatais em sua casa e a busca e apreensão de objetos relacionados ao crime, precisa ser voluntário e livre de qualquer tipo de constrangimento ou coação; d) A prova da legalidade e da voluntariedade do consentimento para o ingresso na residência do suspeito incumbe, em caso de dúvida, ao Estado, e deve ser feita com declaração assinada pela pessoa que autorizou o ingresso domiciliar, indicando-se, sempre que possível, testemunhas do ato. Em todo caso, a operação deve ser registrada em áudio-vídeo e preservada tal prova enquanto durar o processo; e) A violação a essas regras e condições legais e constitucionais para o ingresso no domicílio alheio resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem como das demais provas que dela decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual responsabilização penal do(s) agente(s) público(s) que tenha(m) realizado a diligência.
5. A Quinta Turma desta Corte, por ocasião do julgamento do HC n. 616.584/RS (Rel. Ministro Ribeiro Dantas, DJe 6/4/2021) perfilou igual entendimento ao adotado no referido HC n. 598.051/SP. Outros precedentes, de ambas as Turmas Criminais, consolidaram tal compreensão.
6. As regras de experiência e o senso comum, somadas às peculiaridades do caso concreto, não conferem verossimilhança à afirmação dos agentes policiais de que o paciente teria autorizado, livre e voluntariamente, o ingresso em seu próprio domicílio, de sorte a franquear àqueles a apreensão de drogas e, consequentemente, a formação de prova incriminatória em seu desfavor.
7. Ainda que o acusado haja admitido a abertura do portão do imóvel para os agentes da lei, ressalvou que o fez apenas porque informado sobre a necessidade de perseguirem um suposto criminoso em fuga, e não para que fossem procuradas e apreendidas drogas. Ademais, se, de um lado, deve-se, como regra, presumir a veracidade das declarações de qualquer servidor público, não se há de ignorar, por outro lado, que a notoriedade de frequentes eventos de abusos e desvios na condução de diligências policiais permite inferir como pouco crível a versão oficial apresentada no inquérito policial, máxime quando interfere em direitos fundamentais do indivíduo e quando se nota indisfarçável desejo de se criar narrativa que confira plena legalidade à ação estatal. Essa relevante dúvida não pode, dadas as circunstâncias concretas – avaliadas por qualquer pessoa isenta e com base na experiência quotidiana do que ocorre nos centros urbanos – ser dirimida a favor do Estado, mas a favor do titular do direito atingido (in dubio pro libertas).
8. Em verdade, caberia aos agentes que atuam em nome do Estado demonstrar, de modo inequívoco, que o consentimento do morador foi livremente prestado, ou que, na espécie, havia em curso na residência uma clara situação de comércio espúrio de droga, a autorizar, pois, o ingresso domiciliar mesmo sem consentimento válido do morador. Entretanto, não se demonstrou preocupação em documentar esse consentimento, quer por escrito, quer por testemunhas, quer, ainda e especialmente, por registro de áudio-vídeo.
9. Sobre a gravação audiovisual, aliás, é pertinente destacar o recente julgamento pelo Supremo Tribunal Federal dos Embargos de Declaração na Medida Cautelar da ADPF n. 635 (“ADPF das Favelas”, finalizado em 3/2/2022), oportunidade na qual o Pretório Excelso – em sua composição plena e em consonância com o decidido por este Superior Tribunal no HC n. 598.051/SP (Rel. Ministro Rogerio Schietti, DJe 15/3/2021) – reconheceu a imprescindibilidade de tal forma de monitoração da atividade policial e determinou, entre outros, que “o Estado do Rio de Janeiro, no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, instale equipamentos de GPS e sistemas de gravação de áudio e vídeo nas viaturas policiais e nas fardas dos agentes de segurança, com o posterior armazenamento digital dos respectivos arquivos”. Dessa forma, em atenção à basilar lição de hermenêutica constitucional segundo a qual exceções a direitos fundamentais devem ser interpretadas restritivamente, prevalece, quanto ao consentimento, na ausência de prova adequada em sentido diverso, a versão apresentada pelo morador de que apenas abriu o portão para os policiais perseguirem um suposto autor de crime de roubo.
10. Partindo dessa premissa, isto é, de que a autorização foi obtida mediante indução do acusado a erro pelos policiais militares, não pode ser considerada válida a apreensão das drogas, porquanto viciada a manifestação volitiva do paciente. Se, no Direito Civil, que envolve direitos patrimoniais disponíveis, em uma relação equilibrada entre particulares, a indução da parte adversa a erro acarreta a invalidade da sua manifestação por vício de vontade (art. 145, CC), com muito mais razão deve fazê-lo no Direito Penal (lato sensu), que trata de direitos indisponíveis do indivíduo diante do poderio do Estado, em relação manifestamente desigual.
11. A descoberta a posteriori de uma situação de flagrante decorreu de ingresso ilícito na moradia do acusado, em violação a norma constitucional que consagra direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, o que torna imprestável, no caso concreto, a prova ilicitamente obtida e, por conseguinte, todos os atos dela decorrentes – relativa ao delito descrito no art. 33 da Lei n. 11.343/2006 –, porque apoiada exclusivamente nessa diligência policial.
12. Conquanto seja legítimo que os órgãos de persecução penal se empenhem em investigar, apurar e punir autores de crimes mais graves, os meios empregados devem, inevitavelmente, vincular-se aos limites e ao regramento das leis e da Constituição Federal. Afinal, é a licitude dos meios empregados pelo Estado que justificam o alcance dos fins perseguidos, em um processo penal sedimentado sobre bases republicanas e democráticas.
13. Uma vez que os corréus se encontram em situação fático-processual idêntica à do paciente, no que diz respeito à condenação pelo crime de tráfico de drogas, devem ser-lhes estendidos os efeitos deste acórdão, nos termos do art. 580 do CPP.
14. Porque as instâncias ordinárias, ao condenar o réu pelo crime do art. 14 da Lei n. 10.823/2006, consideraram que a apreensão da arma de fogo ocorreu antes e fora da residência, em contexto fático independente, a condenação por tal delito não é atingida pela declaração de ilicitude das provas colhidas no interior do domicílio, notadamente quando verificado que a validade da busca pessoal que resultou na apreensão da referida arma na cintura do paciente não foi questionada pela defesa.
15. Como consectário da absolvição do réu no tocante ao crime de tráfico de drogas, deve ser procedido ajuste no regime inicial de cumprimento de pena, com a fixação do regime aberto para o delito remanescente, por haver sido estabelecida a reprimenda-base no mínimo legal e se tratar de réu primário.
16. Ordem concedida para, considerando que não houve fundadas razões, tampouco comprovação de consentimento válido para a realização de buscas por drogas no domicílio do paciente, reconhecer a ilicitude das provas por tal meio obtidas, bem como de todas as que delas decorreram, e, por conseguinte, absolvê-lo em relação à prática do delito de tráfico de drogas. Extensão, de ofício, aos corréus.